A manifestação na Avenida Paulista, no último sábado,
simboliza a apropriação indébita e a impostura que ocorrem sob Jair Bolsonaro.
O presidente que se elegeu aproveitando-se da bandeira anticorrupção da Lava
Jato não só ajudou a destruir a operação, em conluio tácito com o PT e demais
partidos implicados em crimes, como agora se utiliza de uma das figuras
políticas mais associadas à corrupção do PT, o mensaleiro Roberto Jefferson,
para fazer discurso na via paulistana que serviu de palco para os maiores
protestos contra a corrupção já registrados no país, depois da
redemocratização.
Foi como se descortinássemos um universo paralelo: o
verde-amarelo de 2016 agora é do bolsonarismo; no alto da caminhão de som,
Roberto Jefferson no lugar de personalidades respeitáveis; ao invés de
exigência de democracia e fortalecimento das instituições, gritos por
intervenção militar e fechamento do STF.
Por ocasião das manifestações de 2016, havia um grupo de
aloprados com as mesmas bandeiras, ainda sem Bolsonaro, que ocupava uma pequena
porção da avenida, pedindo absurdos idênticos: intervenção militar e
correlatos. Não chegava a um quarteirão. O número dessas pessoas não aumentou
tanto assim desde então. O problema é que, agora, eles são os únicos a ir para
a rua. Está certo que, ao contrário dos demais, esse pessoal que aplaudiu
Roberto Jefferson se comporta como aliado do vírus da Covid. Mas é de se
perguntar se a maioria hoje silenciosa só está recolhida por causa da pandemia
ou se apresente mais do que cansada diante das sucessivas derrotas da Lava Jato
em todas as frentes e do espetáculo estarrecedor que se desenrola sem freios em
Brasília. Essa maioria hoje silenciosa não quer fechar instituição nenhuma e
não quer saber de militar tomando poder. Continua a querer manutenção das
liberdades democráticas, instituições que funcionam, honradez e honestidade.
É compreensível o cansaço de repetir as demandas, apontar
as mesmas picaretagens e redundar nos protestos. Também é prudente não ir à
rua, com um vírus ameaçador como o da Covid circulando livremente pelo Brasil.
Mas nem o cansaço nem a prudência deveriam resultar em resignação. Estaria a
maioria de 2016, hoje silenciosa, resignada? Essa impassibilidade pode se
traduzir em duas formas perigosas nas próximas eleições, sem que a ordem
implique hierarquia em matéria de risco: a primeira delas é a conclusão de que
Lula é a opção mais sensata depois de quatro anos de selvageria. Lula também
tinha o mesmo Roberto Jefferson e tudo o que ele representa ao lado dele. Lula
também tem uma visão autoritária, como expressaram os anos em que permaneceu no
poder e o programa de governo do seu poste. Lula também deu no que deu, ao
operar desvio de dinheiro público no varejo e no atacado. A outra forma
perigosa é reprisar 2018 e votar em Bolsonaro, a fim de evitar Lula, fechando
os olhos para as ignomínias cometidas por ele, para a sua sociopatia, para o
aparelhamento das instituições na defesa da sua família e para as alianças com
os corruptos especializados em operar no varejo — e que fatalmente pularão para
o atacado.
Lula e Bolsonaro são duas faces de uma mesma podridão
sistêmica. Assistir a Lula pregando por democracia e honestidade na
paradigmática avenida Paulista será assistir igualmente a um espetáculo
protagonizado num universo paralelo, só mudarão as cores. Não nos resignemos
com essa gente. É preciso sanear a democracia brasileira. Trata-se de tarefa
difícil — eu mesmo, aqui nesta trincheira, não consigo ver a paisagem clareada
neste momento –, mas não é impossível. A democracia costuma se comportar como
uma floresta que, depois de devastada, regenera-se com rapidez surpreendente
mesmo para os especialistas. O que estava previsto para renascer em décadas
recupera-se em questão de meses.
Apostemos na democracia, na sua capacidade de
regeneração, e escapemos do universo paralelo de Bolsonaro e Lula.
Recolhidos e cansados, sim; resignados, nunca.
Fonte: O Antagonista
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